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Conto - Febre de Natal


Ilustração: Croma Concepto Visual/Pixabay

E se São Nicolau não conseguir chegar?

Os olhos negros de Henry piscavam enquanto tentavam enxergar qualquer coisa no breu sem fim do quintal, que avançava pelo meio das árvores e não encontrava nem um fiapo de luz por toda a colônia. Já não era mais hora de criança de sete anos estar acordada, e diziam que o velhinho que saía da Lapônia não apareceria a não ser que todos estivessem dormindo. Do contrário, nada de surpresa no sapato de manhã.

Mas a preocupação de Henry o deixava de olhos arregalados ao mesmo tempo em que fazia corar suas bochechas e acelerava sua respiração. Tinha sido um menino obediente, limpado o terreno, ajudado as galinhas a ciscar e os porcos a fuçar, lavado atrás das orelhas e feito as orações. O protocolo estava completo, até aquele anúncio no jornal aparecer.

O pai o leu em português, mesmo com toda a dificuldade de Carl com o idioma. Fazia 24 anos que havia desembarcado em São Francisco do Sul, só para pegar outro barco, cruzar a Baía da Babitonga e chegar nas terras da colônia, que agora chamavam de Joinville. Construiu uma casa, uma oficina de marcenaria e uma família que tinha em Henry a única criança sobrevivente àqueles anos de privações e barracões sem vedação.

"A Comissão Sanitária desta cidade, de acordo com a Delegacia de Polícia, resolveu adotar medidas para obstar a introdução da epidemia atualmente reinante. Será colocada uma lancha no Rio Cachoeira, perto do Morro d' Ouro, para funcionar como estação de vigilância. Ninguém poderá passar sem antes ficar em quarentena".

Em 23 de dezembro de 1878, as fronteiras seriam fechadas. Era o que o pai podia traduzir daquele monte de palavras desconhecidas.

O São Nicolau com certeza seria enquadrado! Henry podia imaginá-lo, a barba branca sendo inspecionada pela comissão sanitária e os policiais dizendo: "Hum, hum, hum. Fai ficar na Barra de São Francisco! Non pode passar!", e o São Nicolau levando o saco de presentes para a beira da baía, sentando perto do trapiche, não muito longe de onde os corpos eram empilhados.

Isso também aparecia no jornal. Um morto no dia 5, dois no dia 11, quatro no dia 13, mais quatro no dia 15, e assim por diante, até chegar a 55 no dia 22; e o intendente mandar bloquear a divisa para aquela doença não entrar na cidade.

Era isso que tirava o sono de Henry. Não que tivesse medo da contaminação nem dos corpos. Ele sentia vergonha porque só conseguia pensar no seu direito de receber um presente na manhã de 25 de dezembro. E se o São Nicolau não conseguisse chegar? Ou, pior do que isso, e se o que ele, Henry, sentia naquela madrugada, ainda contasse para a lista de bons meninos, e ele perdesse a chance de encontrar um carrinho ou um boneco de madeira sobre os sapatos?

Duas batidas fortes na porta da rua o fizeram saltar na cama. O pai correu para abrir e a voz de Herr Oskar ecoou pela noite como um trovão.

— Herr Carl, precisamos de caixas de madeira! As senhoras da cidade se organizaram e vão mandar milho, ovos, açúcar, arroz, marrecos… tudo o que puder abrandar a dor do lado de lá da Babitonga. Os lancheiros vão sair na primeira hora da manhã! — esgoelava-se o homem.

O pai enfiou as botas e Henry não precisou receber nenhuma ordem. Saiu pela noite atrás dele, na oficina, e se ocupou com pregos e sarrafos até a luz do Sol aparecer. Depois, viu toda sorte de coisas serem colocadas dentro dos caixotes, de aves vivas a garrafas de cerveja, e pães, e os biscoitos de gengibre que a mãe tinha cuidadosamente montado e assado naquele mesmo dia.

Ele ainda podia sentir o cheiro dos biscoitos enquanto via a lancha partir. Já sabia o que estava por vir.

Quando voltou para o lado da cama, os sapatinhos permaneciam vazios. Na mesa, a mãe preparava novos biscoitos com o pouco de manteiga e canela que sobraram. Mesmo assim, quando encostou a cabeça no travesseiro, seu coração estava cheio. Ele tinha a certeza de que o São Nicolau havia passado por ali.

Autora: Cláudia Morriesen | Fonte: NSC Total